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Vem e vê: A Guerra como sinfonia do Horror



Tudo começou com uma espingarda e nela vieram os sonhos de glória que rapidamente se desvaneceram. Apesar de avisados pelo ancião da aldeia que não o fizessem, dois jovens decidem escavar uma trincheira que havia sido coberta de areia, procurando nela espingardas para serem dignos de se juntarem à resistência soviética. Vem e vê, estás convidado a entrar neste novo mundo. Infelizmente, o convite não traz consigo referência alguma àquilo que realmente é e que o sonho não ousa sequer imaginar.


Elem Klimov criou a sua obra-prima, usando como tela a Bielorrússia de 1943. O convite não é só para o rapaz que sendo mais velho e mais jovem que o seu parceiro, naturalmente ficou com a espingarda, mas também para a audiência que não conseguirá conceber aquilo que irá ver. Todos estamos familiarizados com o conceito de Guerra e o seu efeito catastrófico nas populações, mas em Vem e vê somos atirados para o meio dela e tornamo-nos quase num acompanhante de Flyora, o nosso protagonista. É uma experiência voyeurística que, graças à coreografia brilhante de todos os intervenientes e o realismo brutal, nos faz acreditar que estamos deveras dentro de um dos mais marcantes e negros conflitos que alguma vez assolou a Humanidade.


Naturalmente, Flyora é destacado como miliciano e não poderia estar mais satisfeito. Faz parte de uma grande causa e será um herói, apesar dos gritos desesperados de sua mãe que apenas vê o seu filho a dirigir-se para aquilo que será uma morte certa, mas que sabe ela? Flyora faz parte, certamente, de um lado de vencedores, de corajosos que irão livrar o povo da ameaça Nazi. E ao início, assim o parece. Rodeado de homens que quase anestesiados do ambiente de tensão e medo em que vivem, mostram um lado destemido e bastante brincalhão. Um discurso valoroso instiga os homens a entrarem no espírito de camaradagem e de valia necessários para os desafios que se avizinham. Infelizmente, Flyora é deixado para trás (um dos soldados necessitava das suas botas e sem botas, ele só poderia ficar no campo). Um prelúdio para uma sorte descomunal, poderia ser. No entanto, Flyora, entristecido com o sucedido, decide vaguear pela floresta para afagar suas mágoas. A mesma ideia teve Glasha e ambos formam uma amizade de fugaz duração. Fugaz pois em breves momentos, toda a loucura começa e nesta película, que parece que não tem fim. Um ataque aéreo bombardeia o campo, e tanto Flyora como a audiência ficam temporariamente ensurdecidos, rodeados apenas por um zumbido que não permite ouvir o mundo circundante. E agora há que correr, pois o espírito de Guerra começa verdadeiramente a sobrevoar-nos, tal névoa cinzenta que nos persegue trazendo com ela o abominável e desprezível. Apesar de Flyora encontrar felicidade em pequenas coisas como andar à chuva com Glasha, tais momentos rapidamente se dissipam pois a dita névoa não deixa de percorrer os trilhos, em busca das suas vítimas. Ele trá-la para a sua aldeia e sua casa. Com a sua família estarão mais seguros, mas tudo se encontra vazio. Casa desabitadas e a aldeia despovoada, todos partiram numa incessante correria, deixando até comida, bem tão precioso, para trás. Flyora, sabe onde estão e incita Glasha a ir com ela. O que Flyora não repara e que Glasha tão bem notou foram os corpos amontoados por trás dele.


Todos estes momentos são só uma pequena dose daquilo que se avizinha, pois se o espectador já começa a sentir-se algo inquieto com as premonições do futuro, Flyora ainda parece estar em negação. Todo o seu pequeno mundo, que se reduzia à sua casa e aldeia, desmoronou-se e por trás desta parede está um mar de monstros que descritos da melhor forma possível, seriam o desenho digno de um pesadelo, e almas desesperadas com o único objetivo de sobreviver. Tudo aquilo que deles os fazia humanos se dissipou e mais próximo estarão do animal. Os dois são encontrados por um grupo de sobreviventes e no meio deles está o ancião da aldeia, completamente queimado que apenas diz “Eu avisei-vos”, um presságio ecoante de que isto está apenas a começar.




A partir daí, o filme torna-se num ataque frontal aos nossos sentidos. Atrocidades constantes são cometidas a sangue frio e nós/a câmara estamos constantemente lá para presenciar todas as balas disparadas, todas as casas queimadas, todos os corpos deixados. Muitas vezes, os atores confrontavam a câmara, olhando diretamente para nós quase como julgando o facto de podermos estar no nosso conforto, enquanto que essas personagens levam uma vida de pânico constante, ou para nos assustar talvez, pois é certo que se lá estivéssemos, seriam muitos aqueles que não manteriam a compostura.


E no final, não há vencedores, a perversidade consome ambos os lados e a contagem dos corpos é assustadoramente elevada. O que resta são resquícios do que os envolvidos foram. Se existe um inferno, este o será indubitavelmente. O mal é trazido à flor da pele para diversão de alguns, e aquilo que reprovamos e tanto punimos como sociedade civilizada, de repente torna-se em algo completamente permissível. Vem vê é um hino contra tudo isto. Mostra-nos o quão vil a nossa raça pode ser, choca-nos e faz-nos refletir na imensa e brutal sorte que temos por não estarmos neste ambiente. Dá a conhecer o mundo em que seres da mesma espécie decidem a vida de outros com base no completamente arbitrário, decisões que nenhumas bases lógicas ou ideológicas conseguem sustentar. É uma ode para que isto nunca se repita. Pois, pior que assistir a tudo isto, é chegar à conclusão que num passado não muito distante, a frieza e absurda violência que passa por algo ainda maior do que um crime contra a Humanidade era trivial e tolerável pois “estamos em Guerra”.


Quase finalizada a agressão que sofremos, existe um momento em que Flyora, um verdadeiro sobrevivente, dispara contra um retrato de Hitler e nesse momento, Klimov decidiu que teríamos para além da ficção (apesar de baseada em factos tristemente verídicos), algo que nos aproximaria ainda mais da realidade e somos presenteados com uma montagem de vários momentos da vida de Adolf Hitler (curiosamente, o título originalmente pretendido era “Mata Hitler”). Seguidamente, surge um epitáfio “682 aldeias bielorrussas foram destruídas, juntamente com todos os seus habitantes. Ficamos com o desejo que jamais, homens de fraca base moral e discursos aliciantes voltem a tomar tanto poder, pois se há algo que a História nos mostrou, é que ela se repete constantemente, e isto é algo que não podemos voltar a permitir.




Manuel Fernandes

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